quinta-feira, 24 de julho de 2014

Short Novel - Heróis de Areia - Capítulo 15: Proposta


Capítulo 15: PROPOSTA


Duas semanas depois 

As manhãs chegavam sempre da mesma forma. O Sol lançava sua luz tímida, e trazia consigo o anúncio das primeiras horas do dia. Embutido neste aviso, carregava consigo um efeito mágico, ao refletir um lindo brilho nas dunas do deserto. O ar fresco mantinha o ambiente ainda mais agradável e trazia uma silenciosa paz no coração daqueles homens que lutavam, dia após dia, pela existência de sua espécie. Esses primeiros minutos após a noite estrelada faziam muitos parar alguns instantes e sorrir, mesmo após uma batalha. E nem era pela vitória. Isso acontecia também na derrota. Eram momentos únicos. Todos os homens, em segredo, desejam ou esperam esses primeiros minutos do raiar do Sol. Aquecem seu coração. Mas é bem verdade que alguns preferem o brilho das estrelas e o silêncio da noite...
O brilho delicado entrava pelas janelas do Q.G. Deep Sea, sem pedir licença, porém era muito bem vinda. Entrava quieta, sem fazer barulho, como se, envergonhada, escondesse um sorriso de poder entrar sem ser impedida.
 Onde tocava, deixava os móveis e os objetos com uma aparência clara e serena, apesar de serem velhos. Ultimamente ficavam ainda mais bonitos quando essa luz repousava. O dono daquele local havia se empenhado na limpeza da poeira contida neles nos últimos tempos e evitava a todo custo que a depressão impregnasse nos cantos e nos detalhes. Nas primeiras horas da manhã, era uma mistura de luz e calmaria que banhava todos o espaço do barraco. Do outro cômodo, em uma cozinha improvisada, como sempre foi, ouvia-se o barulho de água. Gipsy sentia a chegada da manhã, enquanto mergulhava e esfregava as mãos numa bacia cheia. Jogou o líquido dentro da concha que fazia suas mãos, devagar e delicadamente no rosto, fechando os olhos. Permaneceu um tempo assim, e inclinou a cabeça pra cima, sentindo a manhã entrar pela sua casa. Tentou sorrir, mas o máximo que conseguiu foi suspirar.
Aborreceu-se. Tudo aquilo era mentira. Cedo ou tarde aquela sensação de paz dissiparia no ar, com a aparência branda que aquela luz fingia ser. Sua timidez revelar-se-ia na mais pura maldade acalorada. O toque sutil da luz e os móveis expostos à ela faria tudo que é madeira estalar, pedido para parar, na linguagem dela, quando está muito calor, ou quando há ausência deste. No passar de horas, tomaria a forma do Cavalo de Troia: em seu interior guarda a essência da temperatura do inferno. Os homens começariam a suar. Seus rostos ficariam com uma aparência mais rude e seus olhos, apertados com o brilho do Sol. Não haveria mais tanta paciência. E tudo ficaria mais difícil para enfrentar Lullabys em plena luz do dia.
De fato, eram raros os dias que o clima se mantinha estranhamente morno, com o passar de nuvens e um vento refrescante, como naquela ocasião em Match Tide Village, há algumas semanas atrás. Quando os dias tomavam essa forma, Hunters estranhavam a repentina mudança enquanto outros comemoravam com rodadas de Sand Beer ou Cactuarah estocadas em suas dispensas. Esses últimos diziam que o vento soprava à favor a vitória dos Homens contra as criaturas. Alguns até afirmavam de pés juntos que este ar era benéfico para a Ressonância.

No entanto, a algumas semanas atrás, este clima não foi comemorado pelos dois homens que permaneciam naquele vilarejo...

Gipsy despertou de um pensamento distante, iniciado pela raiva que sentia do calor que chegaria em breve. Ele precisava cuidar de alguém que jazia no leito do cômodo ao lado. Despertara por murmúrios do mesmo que se encontrava deitado na cama inconsciente:

— Nunca...nunca vi olhos mais belos como os seus... Eles me iluminam nesta... escuridão... expulsa-me da minha antiga vida sem sentido...e agora sirvo-te... de corpo e alma...sou único...para seus propósitos puros...

Gipsy notou, pelos murmúrios de Greenglasses, que a febre havia voltado. Hoje seria um dia de poemas infernais...

No entanto, o Hunter agradecia interiormente pelo processo que estava sendo nestes dias. As feridas de Glasses estavam em ótimo processo de cicatrização, e a febre alta que teve nos primeiros dias fazia com que Gipsy trocasse a água da bacia e torcesse o pano muitas vezes. Essa rotina já havia acabado, mas seu coma era profundo, seus delírios ainda mais e o estado febril parecia nunca querer abandona-lo. Todavia, estava mil vezes mais fácil cuidar dele agora.
Até o fim do quinto dia, Glasses levantava bruscamente da cama, apenas a parte o tronco, abria os olhos e proclamava brados trechos de proteção à Lullaby, fiel como um cachorrinho. Era evidente que, quando se observava os olhos, conseguia afirmar com certeza de que o Hunter não estava ali. Estava nas profundezas da ilusão. Desesperadamente sofrendo e gritando de lá, seu pedido de ajuda. Mas eles se transformavam no caminho e chegava à superfície como poemas de vínculo e fidelidade cega.

Gipsy levou a bacia com trapos limpos e colocou-a no chão ao lado da cama do amigo. Puxou o banquinho, sentou-se e mergulhou o pano na bacia. Em seguida torceu-o, e colocou na testa de Glasses, e este parou de murmurar. Voltou a respirar calmamente, no mais pacífico sono.
A ilusão levaria mais um tempo neste estágio, deixando-o apenas dormindo. Mas a preocupação de Gipsy seria quando ele acordasse: o que deveria ser feito.
Provavelmente, ele levantaria normalmente da cama, e quando tivesse uma crise, procuraria a Lullaby que o acertou para servi-la para todo o sempre. E o Hunter não queria ter de espancar seu amigo até quase à morte novamente.
Mas, verdade seja dita, era irritante ouvir o amigo dizendo aquelas coisas. Os Hunters viviam com um propósito, viviam para um fim. Era totalmente oposto àquilo que estava sendo pronunciado pelo inconsciente do amigo. E lembrar que, em outrora, Gipsy ja havia passado pelo mesmo problema, o fazia sentir pena e ainda pior em relação à tudo.
Seus movimentos começaram a se tornar automáticos, ao cuidar do amigo. A visão do homem desfocou por alguns instantes, nas lembranças em primeira pessoa...

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"Era um Sol radiante, pra variar, que estava no céu. Tudo estava em silêncio. Algo quente escorria do seu peito. Deixou cair de suas mãos suas antigas armas na areia e procurou toca-lo. A mão voltou vermelha. A outra fez o mesmo, para tentar parar o fluxo de sangue que jorrava. Era desnecessário.
Ouvia seu coração batendo rapidamente, pelo estado de choque em que se encontrava. Chegava então uma leve dormência, um formigamento que tomava o braço esquerdo, por estar bem próximo do coração. Ergueu a mão jovial pintada de sangue para o Sol, e como se a ilusão já começasse a fazer efeito, contemplou-a. 
Uma brisa veio e mexeu seus cabelos e sua roupa.
Admirou a cor tingida. Observou com detalhes que era jovem demais pra ter tido este fim. Pensava em chegar mais longe, ileso. A visão escureceu e tombou para o lado, perdendo a consciência."

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"Sua mão tremia, mas segurava a arma com força e apontava para para uma figura desfocada. Era alta, e estava próxima à ele; bem em sua frente. A figura mantinha suas mãos erguidas para frente, num gesto que o pedia para parar. A arma, mirando esta figura, tremia, mas nunca saia da mira. Era surpreendente. Vozes abafadas, gritos e diálogos retrucados aconteciam, alheios à perfeita audição e entendimento da cena.
A arma sai de sua mira e volta-se pra quem segura. Antes que a figura possa impedir, é apertado o gatilho."

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"O corpo balançava e os olhos piscaram uma ou duas vezes para abrir, quase definitivamente, e ver que tudo reagia no cavalgar de um Lizgart. Podia ver pela sua visão periférica o tamanho do rabo da montaria, mas não conseguia ver ao redor. Parecia estar muito bem amarrado e preso como uma bagagem, de barriga pra baixo. Havia uma total ausência de vontade própria. Sentia que precisava proteger alguém, mas quem? O rosto da criatura na lembrança estava definitivamente desfocado, deixando-o em dúvida se realmente essa existiu. Seus braços estavam sujos e balançavam com força enquanto o Lizgart o levava para não-se-sabe-onde."

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"Uma voz abafada, de uma outra pessoa, conversa como em um monólogo. Diz que precisa tentar 'essa' alternativa.
 Tudo está escuro. Um ponto luminoso, verde, acende longe, no meio do profundo breu. Não se pode ver o corpo correndo, não enxerga-se a um palmo de distância. Corre em direção do pequeno ponto, com sua coloração e luz cada vez mais forte. Uma Ressonância o faz emitir um brilho branco, e em seguida, sua coloração verde fica fluorescente, e sai ramificações  luminosas, que deslizam pelo breu, iluminando apenas por onde passa. Essas ramificações vão expandindo como raízes num processo aceleradíssimo de crescimento.
Uma destas raízes agarra o tornozelo direito, e pode-se ver o pé. Sente o corpo ser puxado e caindo no chão, é arrastado para o centro dessa luz. Chegando perto, não é um ponto e sim um grande globo. A visão esbranquece aos poucos e o telefone toca..."

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O Telefone toca.
 Gipsy abre os olhos no tranco que toma em cima do banco que estava sentado. Olha com estranheza na direção do aparelho, por ainda ter energia o suficiente para importunar. Em seguida, reflete que poderia haver muitos Peacemakers que ainda não sabia que o grupo Deep Sea estava em hiato. Levantou-se, largando o pano que havia permanecido todo este tempo na sua mão, dentro da bacia com água e atendeu-o.

— Alô, é Gipsy que está na linha?

Esse jeito de falar Gipsy conhecia muito bem.

— Ah, bom dia para você também, Higher!

— Gipsy! A tempos que não nos falamos! Por onde esteve?

— Não vai acreditar se eu te dissesse que hoje em dia eu saio muito pouco aqui do Q.G....

—Muito trabalho a ponto de nem conseguir ir realiza-los? Eu pensei que tivesse dado um tempo, segundo rumores...

— Os boatos são verdadeiros, Higher. Estou dando um tempo nesta merda toda. Você sabe, colocar a cabeça em ordem e preparar novas estratégias...

— Você não precisa me dar satisfações, Gipsy! Anda mesmo mudado,hein? — ele ri e continua — Parece que estamos sempre um ou dois passos atrás dessa raça que insiste em crescer e nos ferrar.
O que será que elas querem? Um exercito de Hunters zumbificados dispostos a servi-las?

— ...

— Gipsy, diga-me, não estaria disposto a pegar nenhum servicinho? Olha, é coisa básica. Mamão com açucar, se é que você sabe o que é um mamão...

— Já tive o prazer de experimentar essa fruta rara...

— Então, deixa eu continuar. A um tempo atrás, eu fiquei de caçar essa Lullaby que estou lhe reportando. Na ocasião eu sabia onde ela estava, mas no fim , não conseguir ir atrás dela. Pintou um monte de trabalho e ela ficou aqui, na minha lista de trampo não realizado. Pelo que sei, ela ainda não foi silenciada. Te interessa?

— Higher, vou ficar te devendo essa.

— Olha, esse trampo surgiu pra mim mas você receberá 100% em cima dele. Qual é, Gipsy! Ela parece ser de Rank baixo, a aparência é de bem nova. Essa raça não apresenta problemas quando misturam esses dois quesitos. Não acredito que você vá levar mais do que duas horas para finaliza-la.

— Higher, eu sinto muito, mas eu não estou com cabeç...

Todo aquele papo estava irritando-o. De repente, Gipsy teve uma tempestade mental. Higher não pode ouvir o baixo gemido que Gipsy deu segurando o telefone, mas o Hunter teve uma "interferência" nos pensamentos, como se tudo que ele não quisesse pensar, passasse como frames e quadros em sua mente. Agaichou-se e segurou com firmeza o móvel que sustentava o aparelho. Demorou uns longos segundos para voltar ao normal.De súbito, sua mente silenciou-se em tudo. Tudo mesmo.Os dois lados de um mesmo homem, havia desmoronado: Fé e Descrença, assim como tudo que pertence a essas duas coisas, foi varrido do seu coração, da sua alma. Não havia um pensamento maciço dentro de sua cabeça.

— Gipsy, você ainda está na linha? Hey, aconteceu algo? Responde, caramba!

O Hunter levantou lentamente. Havia parado de tremer. Ainda segurava o telefone. Primeiro, virou e olhou em direção à cama que estava deitado Glasses, e ficou uns segundos só observando. Embora não pensasse em nada, esboçou uma expressão que estivesse passado algo pela sua cabeça e levou o telefone novamente para o ouvido:

— Diga-me, Higher. Onde posso encontra-la? Me dá mais detalhes...

























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