sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Diário de Bordo de um Sobrevivente: Reencontro Hostil

" Quando eu era pequeno, os mortos me davam medo. Pertenciam a um mundo totalmente diferente e assustador, suas aparições eram inusitadas e eram etéreos: tinham a habilidade de atravessar paredes.
Ao longo do tempo, minha definição provou estar errada. O nome que se dá para isso é 'espíritos' ou 'almas'.
    Hoje, na atual realidade, os mortos tem uma nova conotação: possuem um exército mutilador, desorganizado e totalmente material. E, é claro, me dão hoje o dobro de medo...e desespero... "

                                                                                                                          -Autor desconhecido-


"Naquela ocasião, procurar pistas de meus amigos tinha sido em vão. Os poucos rostos conhecidos já estavam desfigurados e faziam parte de uma outra realidade. E eu não podia fazer mais nada por eles.
Matá-los novamente era muito arriscado. E me faltava capacidade para tal. Eu tinha uma só espada e um único cérebro entrando em parafusos, tentando entender e se adaptar a nova verdade, ao mesmo tempo que também fazia questão de trabalhar dobrado pra não virar comida.

Retornei enquanto pude, peguei a merda dos meus principais pertences para sobreviver e parti, afim de averiguar o quanto esse novo paradigma existia, ou até onde: deixei muita coisa para trás...

Após um ano, por falta de comida e segurança, resolvi voltar e fazer da minha casa e das demais ao meu redor meu pequeno reino. Estaria seguro e aquele bairro não era mais segredo pra mim. Conhecia as rotas de fuga como o corpo de uma mulher gostosa  que me deleitei noites e noites.
Voltei para meu antigo lar aqui em SP trajando roupas e acessórios que fui conseguindo ao longo desse ano. Isso custou algumas invasões à casas vazias e não tão vazias, suor e alguma quantidade de sangue. Algumas vidas pode-se colocar também nesta lista. Nunca as frases 'A casa do Senhor possui várias moradas' e ' Sobrevivência do mais apto' faziam seu sentido completo, e se completavam.
'A vida é outra agora, foda-se!', eu pensava. E é assim mesmo hoje, chapa! Se não bastasse a luta infernal contra a horda esfomeada, os inimigos também são os que ainda pensam. Mas essa é uma linha tênue e sutil sobre sanidade...

Mas acredite: a realidade nunca me bateu tão forte quanto agora.

Chegando em casa, tudo havia sido destruído: haviam marcas e pistas de que os vivos passaram por ali procurando refúgio, da mesma forma que também foram surpreendidos pelos mortos. Entretanto, apesar dos musgos e vegetação persistir nesse cenário de escombros e casas abandonadas, haviam dois detalhes que, se eu tivesse percebido a tempo, TALVEZ não me encontrasse agora nessa situação:

- O local estava razoavelmente limpo e quieto;
- Existia comida e um kit médico bem a mostra;

Cara, não venha dizer que consegue raciocinar numa situação dessa. Eu estava ferrado até o pescoço por praticar Parkour em telhados que  viviam quebrando comigo em cima! Nem lembrava que essa tática era usada por alguns grupos em Cangaíba, Vila Prudente e Ipiranga.
No ímpeto da necessidade, coloquei minha mão no kit e ,sem perceber, acionei uma espécie de dispositivo precário, com alguns tiros automáticos amontoados com restos de artilharia e lâminas.
Nosso cérebro, após um ano tentando sobreviver a tudo, fica meio paranoico e aprendemos  a nos incomodar com a mais leve brisa do vento batendo nos pelos do braço. O reflexo me fez escapar da morte, mas não dos ferimentos do corpo.
Para o canto que pulei e me arrastei ensopado de sangue com uma dor do caralho, xingava o filho da puta que tinha colocado aquela merda ali e desejava encontrar o mais cedo possível pra arrancar a cabeça dele e empalar por mera vingança e ódio infantil. Mas desejava trombar o merdinha depois de me recuperar no novo vestido de peneira que eu trajava naquele momento...Senti um cano gelado na minha têmpora direita e um 'click'. O meu reflexo, ou o que sobrou dele, ainda me fez levantar a espada e apontar na garganta do ser que se encontrava ali, em ótima forma, retribuindo a arma de fogo negra.

Marcos, um outro amigo meu que morava ali naquele mesmo quintal em outrora e que eu pensava estar morto, esbanjava de vida bem mais do que eu, mostrando que ali era o seu território.
Seus olhos estavam diferentes. A porra toda do mundo já tinha enlouquecido mesmo e estava claro que ele iria me matar, sem remorso algum. Ao meio de dores e palavras que mais pareciam gritos, tentei argumentar que éramos amigos.

Ele retrucou, dizendo que a 'amizade' existia para afogar o capitalismo existente da antiga realidade. E que hoje os suprimentos e a sobrevivência era o mais importante.
Agora recordo-me de como ele dizia, antes de tudo isso começar, como ele se deliciaria num apocalipse zumbi, caso acontecesse um dia. E não é que o cara levava jeito pra esse tipo de coisa?...
...Mas também não posso culpar o desgraçado. Perder os entes queridos para essas coisas fode com a mente de qualquer um. Transforma nosso cérebro em paçoca, tah ligado?

A armadilha foi ele quem montou e colocou, focado nos sobreviventes em busca de abrigo e comida. Ele se apoderava do que os viajantes desatentos carregavam consigo. De mim ele não levaria muita coisa: duas espadas, chapéu e meu lenço vermelho.Eu estava faminto fazia três dias; nem minhas fezes o maldito teria. Mas também não teria o prazer de cagar no território dele. Mas... Porra, mano...o lenço não...

A minha sorte (ou não) foi que, com o barulho da armadilha acionada, os mortos vieram não-sei-de-onde, guiado pelo som, barrando a única via entre as casas que levaria ao arsenal de armas que Marcos guardava em uma das casas. Eles barravam também a passagem  para a rua.
'Se eu tiver de morrer, você será devorado também e esse merdinha de arma não vai dar conta', pensei. Mas achei melhor usar as forças que me restavam para bolar uma rota de fuga improvisada.

Relutante em seguir certos toques meus, Marcos ajudou em nossa fuga. Em uma dor dos diabos, os filmes hollywoodianos de piratas me vieram na mente ensinando um truque ou dois, de modo que naquela hora consegui achar uma saída escapando, ele e eu, ilesos dos zumbis, mas não sem antes pegar o kit médico da armadilha, alegando que eu estava fodido por culpa da maldita trap dele. Nada mais justo eu usar.

Por ora, Marcos se encontra desabrigado feito eu.
Por ora, iremos ao centro da cidade, em busca de alimentos fáceis e dias de sobrevivência.
No Vale do Diabo, somos aliados temporariamente.

A amizade já se encontra morta nessa realidade...


                                                                                                         Zombie Walk 2013"






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